Diário de Rorschach. 13 de Outubro de 1985. 23h30. Sexta à noite, um comediante morreu na cidade de Nova York. Ninguém liga. Ninguém ! Ninguém além de mim[1].

EUA de 1985; o país está vivendo um momento delicado de sua história, está no auge da Guerra Fria, e em via de declarar guerra nuclear contra a URSS. É neste contexto que se passa a trama Watchmen, uma das HQ’s mais aclamadas pela critica e mudou completamente o mundo dos super-heróis dos quadrinhos. Esta trama envolve os episódios vividos por um grupo de super-heróis do passado e do presente que, foram forçados a se aposentar pelo governo dos EUA, e os eventos que circundam o misterioso assassinato de um deles.

Esta obra-prima escrita e desenhado por Alan Moore e Dave Gibbons, nos traz uma serie de questões filosóficas, principalmente uma serie de teorias éticas apresentadas, representando ações de cada heróis da trama.

A trama principal trata dos desdobramentos de uma conspiração revelada após a investigação do assassinato de um herói aposentado, o Comediante, que atuara nos últimos anos como agente do governo. Em torno desta história giram várias tramas menores que exploram a natureza humana e as diferentes interpretações de cada pessoa para os conflitos do bem contra o mal, através das histórias pessoais e relacionamentos dos personagens principais.

A responsabilidade moral é um tema de destaque, e o título Watchmen refere-se à frase de um poeta romano Juvenal que viveu do primeiro ou segundo século depois de Cristo, onde satirizou a ação dos homens que punham guardas para garantir a castidade de suas mulheres, com a frase em latim “Quis custodiet ipsos custodes“, traduzida em português em “Quem vigia os vigilantes?“.

Na realidade histórica alternativa apresentada em WatchmenRichard Nixon teria conduzido os EUA à vitória na Guerra do Vietnã e em decorrência deste fato, teria permanecido no poder por um longo período. Esta vitória, além de muitas outras diferenças entre o mundo verdadeiro e o retratado nos quadrinhos, como por exemplo os carros elétricos serem a realidade da indústria dos automóveis e o petróleo não ser mais a maior fonte de energia, derivaria da existência naquele cenário de um personagem conhecido como Dr. Manhattan, um indivíduo dotado de poderes especiais, os quais o levam a possuir vasto controle sobre a matéria e a energia, elevando-o a um estado de semi-deus.

Neste mundo existiriam quadrinhos de super-heróis no final de 1930, os quais eventualmente seriam a principal inspiração para que um dos personagens da série viesse a se tornar um combatente do crime (o primeiro Coruja) na qual com o passar do tempo, junto com outros vigilantes mascarados formam em 1940 o primeiro grupo de super-heróis, os Minutemen.

O Dr. Manhattan, o único a possuir poderes (como explodir desmontar objetos ou até pessoas pois controla os átomos), foi o primeiro da “nova era” de super-heróis mais sofisticados que durou do começo dos anos de 1960, com a aposentadoria dos Minutemen, até a promulgação da Lei Keene em 1977, implantada em resposta à greve da polícia e a revolta da população contra os vigilantes que agiam acima da lei.

A Lei Keene, foi uma reação à percepção de uma crise. A ascensão da ilegalidade e da desordem, junto com a ameaça à segurança no emprego que os heróis representavam para a polícia, levou à se registrar e trabalhar para o governo ou se aposentar. A maioria dos vigilantes resolveu se aposentar, alguns revelando suas identidades secretas para faturar com a atenção da mídia; caso de Adrian Veidt, o herói Ozymandias, considerado o homem mais inteligente da face da Terra. Outros, como o Comediante e o Dr. Manhattan, continuaram a trabalhar sob a supervisão e o controle do governo. O Coruja II, resolveu se aposentar. O vigilante conhecido como Rorschach, entretanto, passou a operar como um herói renegado e fora-da-lei, recusando-se a reconhecer a autoridade da lei, sendo freqüentemente perseguido pela polícia.

A história abre com a investigação do assassinato de Edward Blake, logo revelado como sendo a identidade civil do vigilante mascarado conhecido como O Comediante. Tal assassinato chama a atenção de Rorschach, o qual passará toda a primeira metade da trama entrando em contato com seus antigos companheiros em busca de pistas, considerando praticamente todos como possíveis suspeitos.

Rorschach suspeita basicamente que o evento da morte de Blake estaria relacionado a um possível rancor de criminosos presos pelos heróis no passado, tese que ganha força à medida que outros ex-combatentes do crime e o próprio Rorschach são duramente atingidos por um aparentemente planejado ataque sistemático à suas integridades físicas e credibilidade.

A ameaça pelo extermínio humano, eminente a uma guerra nuclear, faz com que Veidt (o homem mais inteligente da Terra), tramou a maior peça do mundo, conspirando contra seus antigos companheiros de equipe, assassinando um deles, para seu plano dar certo. Assassinando milhões para salvar bilhões. Terminando com a ameaça nuclear, unindo os inimigos (EUA e URSS) para combater um inimigo em comum.

O mundo será punido por desejar a Terceira Guerra Mundial (…). O Comediante estava certo, a natureza selvagem do ser humano vai inevitalvemente levar a aniquilação global. Então, para salvar o nosso planeta, eu tive que, fingir. Pregando a maior peça da história da humanidade. Matando milhões para salvar bilhões. Um crime necessário.

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 Rorschach : o kantiano

Diário de Rorschach. 13 de Outubro de 1985. Porque existe o bem e existe o mal. O mal deve ser punido. Mesmo no dia do juízo final, isso não irá mudar. Mas tem muitos merecendo pagar… e tão pouco tempo[5].

Rorschach carrega um grande fardo em suas costas. Ele viu a verdadeira face da cidade, viu este mundo cheio de vermes, pelo que ele é: uma vala dos desgraçados, cada um escalando sobre as costas dos outros, por nada mais que um prazer insignificante, para simplesmente continuar essa vida patética por um segundo, um minuto, um dia a mais.

Diário de Rorschach. 12 de Outubro de 1985. esta manhã, no beco, havia um cão morto com marcas de pneu no ventre rasgado. A cidade tem medo de mim. Eu vi o rosto dela. As ruas são sarjetas dilatadas e essa sarjetas estão cheias de sangue. Quando os bueiros finalmente transbordarem, todos os ratos irão se afogar. A imundice acumulada de todo o sexo e matanças que praticaram vai espumar até suas cinturas e todos os políticos e rameiras olharão para cima, gritando “salve-nos”… e, do alto, eu vou sussurrar: “não”.

E continua:

Eles tiveram escolha. Todos eles. Podiam ter seguido os passos de homens honrados, como meu pai (…). homens decentes, que acreditavam no suor do trabalho honesto. Em vez disso, seguiram os excrementos de devassos e sem perceber, até ser tarde demais, que a trilha levava a um precipício. Não me digam que eles não tiveram opção. Agora o mundo todo está na beira do abismo, contemplando os liberais, intelectuais e sedutores de fala macia, que ardem no inferno… e, de repente, ninguém mais sabe o que dizer.

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Verdadeiramente a mente deste herói é sombria, mas mesmo assim é regida por um principio simples, de longa e venerável tradição: o mal deve ser punido. Desta forma, Rorschach exemplifica a teoria retributiva da punição; ele sustenta que os malfeitores devem ser punidos, por terem feitos maldades, pois estes merecem a tal punição. Todos nós desejamos punição. Todos se sentimos um pouco do personagem, queremos corrigir erros e os malfeitores sofrendo pelo crime cometido. Rorschach, como apropriado ao seu nome, nos deixa ver a nós mesmos.

Mas, em nossa missão para distribuir a justiça merecida, corremos o risco de nos tornarmos os monstros que combatemos. Na HQ de Watchmen, no final do capitulo VI, há uma citação do filosofo alemão Nietzsche (1844-1900): “Não enfrentes monstros sob pena de te tornares um deles, e se contemplas o abismo, a ti o abismo também contempla”. Assim já podemos imaginar como o herói Rorschach e transformaria.

Os motivos deste herói são puros: é a busca da justiça, da ordem moral, daquilo que é certo. Ele busca uma justiça retributiva ou retificadora, a ideia de procurar compensar uma injustiça mediante a retificação da situação, ou pela recuperação da igualdade a que a injustiça pusera fim. É o principio ‘olho por olho, dente por dente’. O conceito de retificação sugere retirar do criminoso e que se dê à vítima deste. Contempla a ideia do castigo, e que a ordem moral está desequilibrada enquanto essa é claramente difícil de reconciliar com as morais consequencialistas e antecipativas, uma vez que não faz referencias às vantagens adquiridas com a retribuição, vendo-a apenas como um fim em si. Para Rorschach, os culpados devem ser punidos, pois são culpados, e a punição deles deveria ser proporcional aos seus crimes. A punição deve se adequar à gravidade dos crimes do malfeitor. Tornando o herói assim em um herói retributivista.

Para o também filósofo alemão Kant (1724-1804), “a[punição] deve ser sempre infligida sobre [o criminoso] apenas porque ele cometeu um crime”, para ele a punição não deveria ser dado para o bem do criminoso, como por exemplo, para a reforma ou reabilitação, pois assim, seria trata-lo como um animal, um cão que é domesticado. O malfeitor não deve ser tratado como um mero fim, não devemos usar este( uma pessoa) para os fins da sociedade, “pois um ser humano não pode nunca ser tratado com um meio para os propósito de outro”, com isso o filosofo queria nos dizer que, deveríamos tratar as pessoas com respeito. E o por que criminosos mereciam ser punidos, pois sua punição deve respeita-los como agentes morais, e não animais a serem domesticados, como malfeitores a ser responsabilizados por suas ações. Então, segundo Kant, age de forma a usar humanidade, seja na sua própria pessoa ou na pessoa de qualquer outro, sempre, ao mesmo tempo, como fim, nunca meramente como meio.

Se falharmos em punir os criminosos e malfeitores, estaríamos não tratando–os como membros plenos da sociedade moral. Na visão de mundo do herói Rorschach, ele é ordenado por valores comuns, e os desviantes ameaçam sua coeção. Pois para ele, nossa dignidade está se agirmos como se o mundo fosse justo, mesmo quando ele claramente não é. Para o filosofo Hegel (1770-1831) “a punição é o cancelamento do crime(…) e a restauração do que é certo”. Para este, só por meio da punição podemos reafirmar os valores que foram transgredidos e fazer o criminoso sentir o erro que cometeu. E Rorschach adora fazer o malfeitor sentir isso. A punição serve para proteger e reproduzir uma ordem moral ideal.

Cada um deve respeito o próximo e trata-los como fins em si mesmos, pessoas que merecem respeito pelo que são, agentes livre e racionais. A punição é, como descrê Irwin, meramente um instrumento para implementar essa ordem moral. E Rorschach expressa isso, quando fala com o psiquiatra no presídio:

Este mundo sem leme não é moldado por vagas forças metafísicas. Não é deus que mata as crianças. Não é a sina que as esquarteja ou o destino que as dá de comer aos cães. Somos nós. Apenas nós.

O valor da vida está em como ela é vivida. É somente com justiça e ética, que vem o valor e respeito. Assim como Kant descreve, “pois, se a justiça se vai, não há mais qualquer valor nos seres humanos vivendo na Terra”. Rorschach busca esta justiça, uma centelha da moral, para uma luz no fim do túnel.

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Em um último dialogo, com seus companheiros, Veidt, o homem mais inteligente do mundo, vendo que seu plano deu certo comenta:

Duas super potencias desistindo da guerra (EUA e URSS). Eu salvei a terra do inferno. Nós salvamos (…). Agora podemos voltar a cumprir nosso dever.

Na qual Rorschach responde: “O nosso dever é fazer justiça. Todo mundo vai saber o que você fez!”, seguindo o dialogo:

Veidt – Será mesmo Rorschach, se me denunciar irá sacrificar a paz pela qual milhões morreram hoje.

Coruja II – Paz baseada em uma mentira.

Veidt – Mas é paz, apesar de tudo.

Dr. Manhattan – Ele está certo.

Espectral – Não, não podemos fazer isso!

Dr. Manhattan – Você me ensinou o valor da vida humana, se quisermos preserva-la aqui, temos que ficarmos em silêncio.

Rorschach – Fiquem vocês com suas mentiras! Não faço acordos, nem mesmo diante do Armagedom.

Fora do palácio de Veidt, Rorschach encontra Dr. Manhattan. E continua dialogo:

Dr. Manhattan – Rorschach, você sabe que não posso permitir isso!

Rorscharch – Se tivesse se importado desde o começo(com a humanidade) nada disso aconteceria.

Dr. Manhattan – Posso mudar quase tudo Rorschach, mas não posso mudar a natureza humana.

Rorschach – Claro, deve proteger a utopia de Veidt. Um cadáver a mais não faz diferença. Muito bem, o que está esperando, vai me mate, me mate.

Rorschach, no final da trama de Watchmen, mesmo sabendo que esta seria sua última atitude antes da morte, ele comenta: “o mal deve ser punido. Pessoas alertadas”. Rorschach sabe que se deixar o plano de Veidt escapar ileso, a justiça foi comprada, mas não realizada. Para Kant, sem justiça, não há valor na vida humana, como vimos acima. O herói se recusa a fazer concessões, vender a justiça, mesmo que isso signifique desfazer a ilusão de Veidt e, portanto, garantir que os milhões que morreram o tenham feito em vão. Enquanto lágrimas escorrem, sabendo do seu destino, ele berra, “vai me mate”, e Dr. Manhattan o evapora. Rorschach não quis a morte. Ele entendeu (como Kant) o que os outros companheiros de luta contra o crime não conseguiam entender:

É melhor sacrificar a vida do que negligenciar a moralidade. Não é necessário viver, mas é preciso que, enquanto vivemos, o façamos com honra.


[1]WATCHMEN.Edição Definitiva.DC Comics.Editora Panini, 2005. p. 30.


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